Sankay: o silêncio do mar e da montanha

Ensaio fotográfico: Leandro Couri

Textos: Leandro Couri & Gustavo Werneck

Angra dos Reis (RJ) e Brumadinho (MG) – Os cordões de isolamento são samambaias, cipós e raízes grossas que, de cara, desencorajam os mais desavisados a seguir pela trilha interditada. No meio da mata, há colchões tragados pelos arbustos, um espelho quebrado no canto da janela e pedaços de uma antiga cadeira marcada pela lama seca, além de montes de entulhos de demolição. O cenário desolador e sinistro é parte das ruínas da Pousada Sankay, em funcionamento até a passagem de 2009 para 2010, na deslumbrante Enseada do Bananal, na Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ). Nas primeiras horas daquele ano novo, um deslizamento de pedras e lama vindas do alto de uma montanha pôs fim ao empreendimento e matou a estudante de arquitetura Yumi, de 18 anos, filha dos proprietários, os mineiros Geraldo Flávio e Sonia Imanishi Faraci.

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Pouco mais de cinco anos depois da tragédia, que deixou 53 mortos e um desaparecido em Ilha Grande e numa comunidade de Angra dos Reis, o ESTADO DE MINAS mostra, com exclusividade, o estado da pousada considerada um pequeno paraíso tropical e onde só se chega de barco. Desde o acidente, o local está interditado pela defesa civil sob risco permanente de novos acidentes. Ao mesmo tempo, Geraldo e Sonia rompem o silêncio e, com impressionante serenidade, falam das dores da perda, de lembranças e dos novos tempos. Em dezembro passado, quando os colegas da garota se formaram em arquitetura na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, o casal sentiu bater forte a ausência e se refez com boas recordações e união forte.

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Com madeira de portas, janelas e piso da Sankay, Geraldo e Sonia, aposentados, construíram uma casa num condomínio em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Sonia tomou gosto pela cerâmica e tem trabalhado muito na produção de jarros, pratos e outros objetos decorativos. Transformou o barro das angústias na arte da superação. Depois de viver duas décadas na ilha e cinco distantes dela, eles alimentam o sonho de voltar a viver perto do mar e, nem por um segundo, deixam de cultuar a memória de Yumi, nome que, em japonês, significa “caminho de luz”.

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Ilha Grande é a senha para que venha à tona a história que mudou radicalmente a vida do belo-horizontino Geraldo e da carioca Sonia, que se mudou ainda criança para a capital mineira. Tudo começou na década de 1990. Cheios de planos e com a filha pequena, os dois decidiram atender ao “chamado do mar” e iniciar vida nova em família, numa praia. “Meu pai, Akira tinha um terreno no Bananal e, vendo, a nossa determinação nos ofereceu a propriedade. O lugar não tinha água encanada nem luz elétrica, só tínhamos gerador, e, mesmo assim, sem qualquer conforto, encaramos o desafio de erguer a Pousada Sankay”, conta Sonia, explicando que os ideogramas japoneses formadores da palavra significam montanha (san) e mar (kay).

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Tudo corria muito bem até que chegou o réveillon e os Faraci fizeram festa para desejar Feliz 2010 a 54 convidados, incluindo sete amigos da filha chegados de BH. As lembranças ainda estão quentes na cabeça de Geraldo: “Yumi pediu ao DJ para tocar, especialmente, Macarena, para fazer a coreografia, e Viva La Vida, da banda Coldplay, que ela amava. Dançamos até duas da madrugada e os meninos ainda foram nadar perto da pousada. Nossa filha preferiu dormir com a turma, num quarto grande, cedendo o seu para o avô. Eram seis camas e ela dormiu no chão. Quando eram 3h15 daquela madrugada chuvosa, a terra da montanha de 380 metros de altura desceu, trazendo pedras, lamas e raízes. Morreu também o casal de namorados Isabella Godinho, estudante de arquitetura, e Paulo Sarmiento”.

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Quem chega de barco à Enseada do Bananal, no distrito de Ilha Grande, em Angra dos Reis, desfruta do belo cenário panorâmico da praia e pode ver, num contraponto, o rastro do deslizamento na encosta da montanha semelhante a uma cicatriz. O desastre resultante das intensas chuvas do fim de 2009 ganhou repercussão internacional e deixou marcas no meio ambiente e nos moradores. Na época, a avalanche de lama, troncos e dejetos desceu e se dividiu em certo ponto de seu curso destruidor: de um lado, soterrou casas, dizimou vidas e também parte da praia; no outro, onde se localizava a Sankay, uma pedra gigante rolou a ribanceira e atingiu em cheio o quarto onde dormiam Yumi e amigos, entre eles o casal de namorados Isabella e Paulo.

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Após o trabalho de resgate das vítimas nos escombros e da construção de muro de contenção na praia, todas as casas foram interditadas pela defesa civil, e somente as localizadas à esquerda (de quem chega à enseada) continuam com autorização. A exceção vai para uma moradia cujos proprietários obteveram liminar na Justiça para ocupação
Alguns moradores não gostam de comentar sobre a tragédia ou ir além dos cordões de isolamento das árvores, mas, como constatou o repórter fotográfico Leandro Couri do EM, não se incomodaram em indicar a trilha e alertar sobre o mato avantajado. As instalações abandonadas e consumidas pela floresta ainda trazem fortes traços do lugar que já foi um dos mais luxuosos da Ilha Grande, com estrutura própria, incluindo barco para translado até Angra dos Reis, vista privilegiada para o mar, deck, sauna, piscina ,salão de jogos e, principalmente, operando com mais de 70% da sua capacidade de ocupação o ano inteiro.

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O empreendimento erguido por Geraldo Flávio e Sonia Imanishi Faraci na Enseada do Bananal, não existe mais – restaram ruínas. Impressionado com o cenário, cujo ponto alto era a Sankay, Couri fez muitas fotos e mostrou algumas delas ao casal, em sua residência num condomínio em Brumadinho. “Desde a tragédia, nunca mais estive lá…”, disse Geraldo, que, além de olhar fixamente para as imagens, coçava a cabeça ao verificar os detalhes. Sonia também viu o material com tranquilidade, mas, algumas vezes, baixou os olhos.

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As lembranças voltaram, mas sem lágrimas. Numa das fotos mostradas, Geraldo identificou o quarto dele e de Sonia, que ainda está com um buraco na parede. “Atrás do nosso quarto, ficava o de Yumi”, disse o ex-proprietário da pousada olhando com admiração para Couri. “Puxa vida! Você esteve lá…” Ao ver outra foto, ele contou o episódio envolvendo a cabeceira da cama do casal. “Tínhamos ali uma tela grande de autoria de Léo Brizola. Com a força do deslizamento, ela foi arrancada e lançada na praia. O quadro ficou sobre a areia durante muito tempo, sofrendo os efeitos do sol e da chuva, com as pessoas passando por cima, enfim, muitos danos.” Ao ser localizada a tela, Brizola achou que seria melhor deixá-la do jeito que estava e o casal a mantém em casa com todas as suas marcas. Mesmo com a ameaça de novos deslizamentos, a Pousada Sankay se tornou alvo de saques no meio da noite.

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INABITÁVEL- Quem já esteve em Ilha Grande tem certeza de que realmente está num paraíso, tal a combinação perfeita de mar, montanha, trilhas, vegetação e demais belezas naturais. Desde a tragédia que deixou 53 mortos e um desaparecido, incluindo o Morro da Carioca, comunidade na cidade de Angra dos Reis (RJ), a Enseada do Bananal foi declarada área de risco permanente e inabitável pelas autoridades.

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A Prefeitura de Angra dos Reis, via Secretaria Especial de Defesa Civil e Trânsito, informa que, em 2010, após concluídos os trabalhos de resgate dos corpos, foi construído um muro de enrocamento (pedras) no local para evitar que novos blocos de rocha se deslocassem para o mar. Apesar disso, a Defesa Civil Municipal, em trabalho conjunto com o Corpo de Bombeiros, decidiu pela interdição permanente de toda área onde ficava a Pousada Sankay. O local é considerado “congelado” para que não haja mais ocupação, por questões de segurança, pois as rochas estão soltas no alto do morro e não há como deslocá-las.Em nota, a instituição afirma que “inevitavelmente, as rochas soltas no alto do morro irão descer para a área atingida em 2010 em algum momento, e a Defesa Civil busca garantir, com a interdição, que não registremos novos óbitos.

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